Desespero

Artigo: Filósofos contra o suicídio - Por: Jason Medeiros

O termo suicídio deriva da palavra latina suicidium (sui = si mesmo; caederes = ação de matar). Foi inicialmente utilizado pelo pesquisador francês René Desfontaines (1750-1833) em 1737, e significa o ato intencional de tirar a própria vida.

Não há dúvida de que esse é um triste fenômeno tão antigo quanto a história da humanidade, analisado e expresso por um número incalculável de pesquisadores, intelectuais e artistas, como, por exemplo, o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) em O Suicídio (1897).

Desde o início da pandemia de coronavírus, os casos de suicídio aumentaram consideravelmente, como fora antecipado por alguns por alguns especialistas, e desdenhado por diversos órgãos de mídia, em função de um conjunto de causas que vão desde o isolamento social a perda de fonte de renda, de familiares, etc.

Portanto, gostaria de apresentar o ponto de vista de dois filósofos de épocas e correntes distintas, mas que contribuíram com argumentos contrários à prática de ato tão desesperado, vejamos…

Martin Heidegger (1889-1976)

Heidegger foi um filósofo alemão contemporâneo, ele aborda o suicídio na 2ª Seção da sua obra Ser e tempo (1927).

No texto, o filósofo nos diz que desde o nascimento vemos pessoas morrendo, sejam parentes próximos ou distantes, vizinhos ou desconhecidos, mas que nenhuma dessas mortes é tão poderosa quanto a nossa própria, pois é a nossa morte que encerra todas as nossas possibilidades de ser o que quisermos e pudermos ser.

Ele continua explicando que com o nosso nascimento, nasce também a nossa morte, pois ela nos acompanha até o instante derradeiro, e ela (a morte) pode acontecer em qualquer momento da nossa vida, sendo absolutamente imprevisível. Isso significa dizer que a nossa morte faz parte de nós mesmos, e por essa razão devemos nos relacionar adequadamente com ela.

Muitas vezes falamos: “todo mundo morre, e eu morrei também um dia, mas esse dia não é hoje, não agora”. Heidegger diz que interpretar a morte dessa maneira é um erro, pois se tenta determinar a morte como não sendo “agora”, e isso é um tremendo engano porque a característica mais fundamental da morte é que ela pode acontecer a qualquer tempo, mesmo que isso seja improvável, estatisticamente falando, ou seja, uma pessoa mais velha não está necessariamente mais próxima da morte que uma mais jovem.

Normalmente fugimos da morte por medo dela, por medo de deixarmos de existir, isso muitas vezes nos leva a trabalhar compulsivamente (“workaholic”), para não pensarmos na iminência da nossa morte. Mas não devemos temê-la, pois ela não é um ente (outra pessoa, um animal, etc.) que nos ameaça, mas sim uma parte de nós mesmos.

Heidegger também nos diz que ao retirarmos a nossa própria vida (suicídio), nós também estamos lidando com a morte de forma inadequada, pois estamos tentando novamente determinar quando ela acontecerá, por medo da sua possibilidade constante, e já vimos que ela é certa, mas indeterminada. Diz ele:

É manifesto que o ser-para-a-morte em questão não pode ter o caráter de empenho que se ocupa de sua realização. De um lado, a morte enquanto algo possível não é um manual e nem algo simplesmente dado possível, e sim uma possibilidade de ser da presença. Assim, portanto, o ocupar-se da realização desse possível deveria significar deixar de viver. E, com isso, a presença retiraria de si o solo para um ser que existe para a morte.

Ver mais:

>> Artigo: Deus existe? Santo Agostinho responde! – Jason Medeiros

Para Heidegger, o relacionamento correto com a morte se dá quando o ser humano se angustia ao perceber que irá morrer a qualquer momento, e quando isso acontecer ele deixará de existir. Isso revela para o ser humano que só ele pode e deve conduzir o rumo da própria vida, sem ficar preso exclusivamente nos deveres do dia-a-dia, é isso que Heidegger chama de ser-para-a-morte. O professor do departamento de filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Doutor Roberto Kahlmeyer-Mertens, explica essa relação nas 10 Lições sobre Heidegger (2015):

A angústia, existencialmente falando, não consiste exatamente em um mal ao ser-no-mundo. Pelo contrário, ao antecipar o caráter finito do ser-aí, ela oportuniza ao ser-aí um momento de liberdade do poder diretivo do mundo faticamente consolidado, permitindo que o ser-aí escolha outros modos autênticos de existir.

O Suicídia (1881) de Édouard Manét (1832- 1883)

Aurélio Agostinho (354-430)

Agostinho foi um filósofo africano antigo, ele aborda o suicídio no Livro III da sua obra Sobre o livre-arbítrio (395).

No texto o santo nos diz que a origem do mal no mundo se deve a liberdade que cada um de nós possui (o livre-arbítrio). Isso não significa dizer que a liberdade seja um mal, muito pelo contrário, ela é um bem concebido por Deus, assim como um cavalo é um ser mais excelente que a pedra mesmo que ele tenha (e justamente por ter) a liberdade fugir do seu estábulo e ela (a pedra) não, mas o mal deriva justamente da liberdade de escolher tudo aquilo que se afasta de Deus, o summum bonum (bem maior).

Santo Agostinho nos diz que da liberdade humana deriva o mal no mundo, e desse mal derivam homens afetados por ele e que desejam não mais existir, desejam tirar a própria vida. Mas, o filósofo nos diz que isso é um erro grave, pois ao se suicidar escolheu-se o nada, e nenhuma escolha é melhor quando o que se escolhe é o nada:

Considera também o inconveniente e o absurdo que é dizer: “Quisera mais não existir do que ser infeliz”. Por dizer: “Quisera mais isto do que aquilo”, é escolher alguma coisa, e o não ser não é coisa alguma, mas nada. Portanto, de nenhum modo se pode escolher bem quando o que se escolhe é o nada. […] Mas o que não existe não pode ser melhor, e mais em razão está o não querer existir que o pensar que deverias querê-lo.

Ele segue dizendo que quem faz uma escolha correta, torna-se melhor ao consegui-la. Mas alguém que infelizmente escolheu tirar a própria vida escolheu o nada, acreditando que isso seria melhor que a sua condição anterior à ação de se matar. Agostinho diz que essas pessoas não estão convencidas de que escolheram o nada, pois a razão por vezes difere do sentimento, e mesmo quando o suicida diz que optou pelo nada, intimamente ele sente que escolheu a quietude:

Quando alguém acredita que depois da morte não será nada e, no entanto, se vê impelido por aborrecimentos insuportáveis a desejar a morte com toda a sua alma, determinando-se a ela, e, com efeito, se suicida, tem a opinião errada de um completo aniquilamento, e seu sentimento é de um desejo natural de descanso. […] Por conseguinte, todo aquele desejo de morrer que se encontra na vontade não tem a finalidade de chegar ao aniquilamento do que morre, mas de chegar ao descanso.

Portanto, todo aquele que deseja a morte deseja não o nada, mas sim uma realidade mais perfeita do ser que só pode ser alcançada pela aproximação de Deus, aquele que lhe concebeu o dom da liberdade, da vida, da existência e que é o Ser por excelência.

O professor do departamento filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Doutor Marcos Costa, arremata essa questão nas suas 10 Lições sobre Agostinho (2012):

A genuína e definitiva resposta agostiniana ao problema do mal, a saber: o único mal que podemos chamar propriamente de mal é o mal moral, cuja causa ou origem encontra-se na má vontade do homem, que, por livre escolha, resolve subverter a ordem estabelecida por Deus […] Nesse caso, o mal é definido como privação, defecção, ausência ou distanciamento do Bem – Deus, e, portanto, totalmente destituído de consistência ontológica. É antes não ser ou nada absoluto.

Síntese?

Certamente os dois filósofos estão falando sobre a mesma coisa, mas não da mesma forma. Para Heidegger, o suicídio é a maneira errada de lidar com a morte, pois aquele que se mata acaba com todas as suas possibilidades. Já para Santo Agostinho, aquele que escolhe se matar escolhe o nada, e nisso o pensamento dos dois se assemelha. Também se aproximam quando dizem que a morte e as dificuldades da vida não devem ser enfrentadas fugindo delas, mas tratando-as da forma adequada. Diferem, no entanto, no modo como se deve lidar com tudo isso. Enquanto para Heidegger tratar a sua morte de forma adequada é reconhecer que ela é sua a todo o momento, e que encerra todas as suas possibilidades, com efeito, esse reconhecimento deve levar a uma vida autêntica; para Agostinho, as dificuldades da vida não derivam de Deus, mas da liberdade humana, e aquele que mais se distancia Dele, mais se torna desgraçado, e quão mais desgraçado for mais desejará a própria morte, acreditando ser um refugio, quando na realidade se direciona para o nada absoluto, com efeito, somente se supere esse problema quem se aproxima das coisas de Deus, aquele que concedeu o maior de todos os dons, o dom da vida.

Por: Jason Medeiros

Jason de Almeida Barroso Medeiros, 27 anos, Bel. em Direito pela UNICAP; Estudante de Filosofia na UFPE; Militar da Reserva do Exército Brasileiro; Jornalista com coluna no Portal de Prefeitura; Entusiasta da Política e editor do perfil @ocontribuinteoriginal no Instagram.