Kit Covid

Médicos de 3 planos receitam tratamento precoce antes mesmo de exame de covid

A distribuição por médicos do chamado “kit covid” se tornou o procedimento comum de atendimento em ao menos 3 planos de saúde: Prevent SeniorUnimed Rio e Hapvida. Pacientes com sintomas gripais saem de consultas presenciais ou por telefone com um coquetel de até 8 medicamentos. O “tratamento” começa antes mesmo de o teste de covid-19 ser realizado.

Com presença em 14 Estados, as 3 operadoras atendem, juntas, cerca de 5,3 milhões de pessoas, segundo as próprias empresas. Os atendimentos têm pequenas diferenças, mas os profissionais das 3 redes prescrevem medicamentos que não têm eficácia cientificamente comprovada contra o coronavírus. Além disso, os medicamentos do kit podem ter efeitos colaterais sérios para a saúde dos pacientes.

Poder360 conversou com 12 médicos, pacientes ou familiares de pacientes que receberam uma receita ou o “kit covid” das operadoras de saúde. Todos relataram que os medicamentos foram oferecidos antes da realização do teste.

O chamado “tratamento precoce” contra a covid-19 é defendido pelo presidente Jair Bolsonaro.

“Não desistam do tratamento precoce, não desistam. A vacina é para quem não pegou [covid-19] ainda”, disse o chefe do Executivo federal em 18 de janeiro. “Por que não pode ter um tratamento imediato? Olha a questão do ‘off label’, fora da bula. Isso é um direito, dever do médico. Ele tem que buscar uma alternativa”, reforçou Bolsonaro.

A mãe de Andreia Cristina dos Santos foi atendida na unidade da Prevent Senior em Santana, na zona norte de São Paulo, em 21 de março. Com 65 anos e hipertensa, a mulher recebeu um kit com 8 medicamentos para tomar por 5 dias.

O teste para a covid-19 foi realizado apenas no dia seguinte, mas o médico pediu que ela começasse a tomar os remédios imediatamente, antes mesmo do resultado.

O kit fornecido pela Prevent Senior, pelas receitas e protocolos entregues aos pacientes, inclui hidroxicloroquina, azitromicina, prednisona, vitaminas C, D e zinco, colecalciferol (tipo de vitamina D), ivermectina e colchicina. Além disso, também são receitados suplementos alimentares.

Abaixo, a 1ª imagem mostra a receita entregue à paciente em 21 de março. A 2ª imagem é a reprodução do resultado do teste de coronavírus, informado às 9h45 de 22 de março.

Andreia é estudante de auxiliar de enfermagem e pediu que a mãe não tomasse a hidroxicloroquina.

“Porque vemos nas pesquisas que não tem fundamento, e tem pessoas que ficam até pior. Os outros medicamentos ela tomou, mas ainda assim não melhorou“, conta.

A mãe de Cristina precisou voltar ao pronto-socorro da Prevent. O coquetel do “kit covid” não ajudou em sua recuperação. Ela teve o diagnóstico de covid-19 confirmado e foi constatado que estava com 25% do pulmão comprometido.

Os médicos então interromperam as medicações e continuaram o tratamento apenas com um medicamento voltado para doenças respiratórias. Agora, seu quadro clínico está melhor.

O infectologista José David Urbaez Brito, que integra a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), alerta para os riscos de usar remédios para tratamento preventivo ou em pacientes que não estejam internados. Até o momento, o único medicamento aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para tratar pacientes infectados pelo coronavírus é o remdesivir.

“O medo se tornou delírio e muitas pessoas acreditam que esses medicamentos têm algum efeito. Não têm. É preciso entender isso“, diz.

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Também de acordo com os relatos colhidos pela reportagem do Poder360, a maior parte das pessoas não recebe nenhuma informação sobre possíveis efeitos colaterais ou contraindicações dos medicamentos.

Foi isso que preocupou a família de Giovanna Mandarino. Beneficiária da Unimed Rio, a jovem de 21 anos foi ao pronto-socorro da seguradora em 17 de março. Seu único sintoma era tosse persistente por 3 dias. Antes mesmo de fazer o teste para coronavírus, ela recebeu uma receita com hidroxicloroquina, ivermectina e outros.

Abaixo, a 1ª imagem mostra a receita entregue à paciente em 17 de março. A 2ª imagem é a reprodução do resultado do teste de coronavírus, informado em 18 de março.

Giovanna decidiu tomar apenas o remédio indicado para tosse. O resultado de seu teste deu positivo, mas em poucos dias ela já não sentia quase nada. Já sua mãe, Tereza, de 59 anos, recebeu exatamente a mesma receita e tomou todos os medicamentos.

Ela piorou. Ficou muito cansada, muito enjoada, não conseguia comer“, conta Giovanna. Sua mãe precisou retornar à Unimed Rio e os médicos suspenderam a medicação, mas, como ela não melhorou, foi internada em um hospital da rede. Tereza teve alta na 5ª feira passada (1º.abr.2021) e agora se recupera em casa.

Os pais de Tatyana (que prefere não informar o sobrenome) receberam receitas praticamente idênticas na Prevent Senior. O coquetel foi receitado antes do teste de covid-19. Ela afirma que não queria que os pais tomassem os remédios, mas eles receberam o kit no pronto-socorro e começaram a se medicar imediatamente.

“Entregaram uma receita com os horários. Em nenhum momento falaram sobre qualquer tipo de reação. Não foi explicado nada sobre os remédios“, diz.

O pai de Tatyana, de 70 anos, tem histórico de doenças cardíacas e ainda assim tomou durante 5 dias a hidroxicloroquina, que pode provocar arritmia.

Para Brito, a prescrição indiscriminada de medicamentos sem eficácia comprovada por médicos precisa ser analisada pela Justiça.

“Há diversas provas de que além de não ter eficácia contra a covid-19, esses remédios prejudicam a saúde. Muitas pessoas desenvolvem hepatite, vão parar na UTI e até precisam de transplante“.

Segundo o Painel de Notificações de Farmacovigilância da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de março de 2020 até a última 2ª feira (5.abr), foram notificadas 962 reações adversas em pacientes que usaram os medicamentos do “kit covid”.

Os registros mostram ainda que 11 pessoas morreram depois de tomar os medicamentos. Houve ainda 146 registros de reações graves.

Poder360