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Artigo: “Comunistas comem crianças” – As histórias por trás do mito - Por: Jason Medeiros

Alguns anos após a Revolução Comunista Russa de 1917, um mito anticomunista passou a fazer parte do imaginário popular, o de que os comunistas eram canibais que comiam bebês e até mesmo seus próprios filhos.

Por mais absurda que essa sentença possa parecer, ela tem mais fundamento histórico do que nós gostaríamos. É óbvio que socialistas não são intrinsecamente canibais, sugerir isso seria uma bobagem, porém, o sistema econômico de coletivização forçada da terra, em comunidades, principalmente, agrárias, proporcionou períodos de fome intensa que assolaram as populações de vários países que sucumbiram a esse regime.

Vejamos então algumas das mais emblemáticas histórias por trás desse famoso mito.

UNIÃO SOVIÉTICA

Fome Povolzhye (1921-1922)

Some a cadeia de eventos da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), da Revolução de Outubro (1917), e da Guerra Civil Russa (1918-1922), a política leninista do Comunismo de Guerra (1917-1921), que tomava à força a produção de alimento dos camponeses, e a uma das secas intermitentes que ocorreu em 1921, responsável por destruir 22% de todas as safras, temos como resultado a Grande Fome de 1921-1922, que levou a morte de ao menos cinco milhões de pessoas, também conhecida como Fome de Povolzhye.

Segundo o historiador britânico Orlando Figes, na aclamada obra A tragédia de um Povo: A Revolução Russa: 1891 – 1924 (1996), naquela ocasião, as mães, para alimentar os seus filhos, decepavam os membros de cadáveres e ferviam a carne; as pessoas alimentavam-se dos seus próprios parentes, e, com frequência, até mesmo bebês, já que eram menos resistentes à fome e às doenças, além de possuir uma carne mais macia. Figes também afirma que havia bandos de canibais e negociantes que matavam crianças pequenas, fosse para cosumo próprio, fosse para vender a carne numa taverna:

“A fome transformou as pessoas em canibais. Esse foi um fenômeno muito mais comum do que os historiadores têm presumido. Na Bachkíria e nas estepes em torno de Pugachev e Buzuluck, onde a falta de alimentos era aguda, verificaram-se milhares de casos, cuja maioria nem chegou a ser registrada. Um homem condenado após ter devorado várias crianças, confessou: ‘Em nossa aldeia, todos consomem carne humana, mas não revelam que o fazem’. ‘Há inúmeras tavernas na vila e todas servem pratos à base de crianças’. […] Em algumas aldeias, os camponeses recusavam-se a enterrar os mortos, preferindo guardar os corpos nos silos e estábulos; não raro, a gente do campo pedia às turmas de socorro às vítimas da fome que, em vez de recolher os defuntos, os abandonassem nos povoados. Na aldeia de Ivanovka, perto de Pugachev, uma mulher foi flagrada devorando a carne do marido. A refeição estava sendo dividida com o filho do casal. Quando as autoridades policiais tentaram jogar fora o que ainda havia no prato, ela gritou: ‘Não, precisamos dele para nos alimentar, ele é nosso sangue e ninguém tem o direito de levá-los de nós’.”

E o historiador russo, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1970, Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008), relembra a tragédia no clássico O Arquipélago Gulag (1973):

“Aquela fome horrível levou ao canibalismo, ao consumo de crianças por seus próprios pais – a fome, que a Rússia nunca conheceu mesmo no Tempo de Dificuldades [1601-1603].”

Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921 (FIGES, 1996)

Holodomor (1932-1933)

A palavra Holodomor deriva dos termos ucranianos holod (fome) e mor (extermínio), e foi o nome escolhido para a Grande Fome ucraniana de 1932-1933, causada pelas políticas stalinistas de coletivização das fazendas; o confisco de grãos e gados; e o impedimento dos camponeses de deixarem as áreas de fome à procura de alimento, levando a morte de aproximadamente 4 milhões de ucranianos e tantos outros milhões de soviéticos.

A Escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum no livro A Fome Vermelha: A guerra de Stálin na Ucrânia (2017) relata vários e vários casos de canibalismo como consequência direta da fome:

“O horror, a exaustão, a indiferença desumana pela vida e a constante pressão da linguagem do ódio deixaram suas marcas. Combinados com a total falta de alimentos, eles também produziram no campo ucraniano uma forma bem rara de loucura: no fim da primavera e durante o verão, o canibalismo alastrou-se. Mais extraordinário ainda, sua existência não era segredo, nem em Kiev, Kharkov ou Moscou. Muitos sobreviventes presenciaram tanto o canibalismo quanto, com mais frequência ainda, a necrofagia, consumo dos corpos das pessoas que haviam morrido de fome. […] Um relatório do chefe do OGPU na província de Kiev também menciona o canibalismo se tornando um ‘hábito’. Em alguns vilarejos, ‘a ideia de que é possível consumir carne humana é mais forte a cada dia que passa. Essa opinião se espalha em particular entre crianças inchadas e famintas’. […] Larysa Venzhyk, da província de Kiev, recordou-se de que, no início, houve apenas rumores, histórias de ‘crianças que haviam desaparecido em algum local, de pais degenerados que comiam seus filhos. No fim das contas, não eram rumores, e sim a horrível verdade’. Em sua rua, duas meninas, filhas de um vizinho, sumiram. O irmão delas, Misha de 6 anos, fugiu de casa. Vagou pelo vilarejo, mendigando e roubando. Quando perguntado por que fugira de casa, Misha demonstrou medo: ‘Meu pai vai me cortar toda.’ A polícia investigou a casa, encontrou evidências e prendeu os pais. […] A polícia também prendeu um homem no vilarejo de Mariia Davydenko, na província de Sumy. Depois da morte da esposa ele enlouquecera pela fome e comera a carne de sua filha – e, depois, a do filho. Um vizinho notou que o homem estava menos inchado e faminto do que os demais, e perguntou-lhe por quê. ‘Comi a carne de meus filhos’, replicou ele, ‘e se você falar demais, vou comer a sua também.’ […] Na província de Vinnytsia, pessoas que escaparam da fome também relataram o destino de Iaryna, que esquartejara o próprio filho. Ela mesma contou a história: ‘Alguma coisa aconteceu comigo. Coloquei o menino dentro de uma pequena bacia e ele perguntou: ‘O que você vai fazer, mamãe?’ Respondi: ‘Nada, nada’. […] Mykola Moskalenko também se lembrou do horror que sua própria família sentiu quando soube que os filhos de uma vizinha haviam desaparecido. Ele deu a notícia à mãe, que repassou de imediato às autoridades locais. Um grupo de moradores se juntou em torno da fazenda da vizinha: ‘Entramos na casa e perguntamos pelas crianças. A mãe disse que elas haviam morrido e que as enterrara no campo. Fomos procurar e não encontramos nada. Os adultos começaram a revistar a casa: as crianças tinham sido esquartejadas (…) quando lhe perguntaram por que fizeram aquilo, ela respondeu que ‘de qualquer jeito, elas não sobreviveriam, mas assim ela conseguiria’’. […] Histórias como essas se espalharam com rapidez e só fizeram aumentar o clima de ameaça. Até nas cidades, pessoas repetiam os casos de crianças sendo comidas. Sergio Gradenigo, cônsul italiano, reportou que em Kharkov os pais levavam pessoalmente os filhos para a escola, e os acompanhavam durante todo o tempo, temerosos de que pessoas famintas os caçassem. ‘Filhos de líderes do partido e do OGPU são alvos preferidos, porque têm melhores roupas que outras crianças. O comércio de carne humana tornou-se mais ativo.’ […] Na província de Dnipropetrovsk, o OGPU reportou a história de um integrante de fazenda coletiva, Ivan Dudnyk, que matou o filho a machadadas. ‘A família é grande. E é difícil permanecer vivo, então o matei’, declarou o assassino. […] De modo semelhante, quando um menino de 14 anos matou a irmã para comer sua carne no vilarejo de Novooleksandrivka, no sudeste da Ucrânia. […] Na província de Dnipropetrovsk, uma mulher que assassinou a filha para comê-la […] A causa daquelas ‘doenças mentais’ e dos súbitos surtos de emoções ‘socialmente perigosas’ era perfeitamente óbvia para a polícia também: as pessoas passavam fome. […] Em Penkivka, o OGPU de Vinnytsia reportou que um fazendeiro coletivo matara duas de suas filhas e usara a carne delas como alimento. […] No vilarejo de Dubyny, outro fazendeiro também assassinara suas duas filhas, e ‘pôs a culpa dos crimes na fome’, Houve, afirmam os policiais, ‘outros incidentes análogos’. Ao longo da primavera de 1933, cresceu o número de casos assim. Na província de Kharkov, o OGPU relatou diversos incidentes em que os pais comeram a carne de filhos que haviam morrido de fome, bem como casos em que ‘membros famintos de famílias haviam matados os mais fracos, normalmente crianças, para se alimentarem com suas carnes’. […] ‘Iryna Khrypunova estrangulou a neta de 9 anos e cozinhou seus órgãos internos. Anton Khrypunov removeu os órgãos internos da irmã morta, de 8 anos, e os ingeriu.’ […] correspondentes da província de Vinnytsia reportaram seis incidentes de ‘canibalismo causado pela fome, em que pais assassinavam os filhos e usavam sua carne como alimento’.”

Um relatório policial da província de Kiev, de abril de 1933:

“Uma mulher kulak de 50 anos, vinda de Zelenky, distrito de Bohuslavskyi, escondida em Kuban desde 1932, retornou à cidade com a filha (adulta). Ao longo da estrada entre a estação de Horodyshchenska e Korsun, ela atraiu um garoto de 12 anos e cortou sua garganta. Os órgãos e outras partes do corpo foram colocados pela mãe em uma sacola. No vilarejo de Horodyshche, o cidadão Sherstiuk, morador local, deu guarida às mulheres para passarem a noite. De maneira desonesta, a mãe inventou que os órgãos eram de um bezerro e deu o coração ao ancião hospedeiro para cozinhar e grelhar. A carne foi comida por toda a família, inclusive pelo patriarca. Durante a noite, desejando pegar mais carne da sacola, o senhor descobriu as partes decepadas do garoto. As criminosas foram presas.”

O historiador estadunidense Timothy Snyder em Terras de Sangue: A Europa entre Hitler e Stalin (2010) afirmou que:

“As boas pessoas morreram primeiro. Aqueles que se recusaram a roubar ou a se prostituir morreram. Aqueles que deram comida a outros morreram. Aqueles que se recusaram a comer cadáveres morreram. Aqueles que se recusaram a matar seus semelhantes morreram. […] Pelo menos 2.505 pessoas foram condenadas por canibalismo nos anos de 1932 e 1933 na Ucrânia, embora o número real de casos certamente fosse muito maior.”

Uma família de famintos no campo devastado (APPLEBAUM, 2017)

Ilha Nazino (1933)

Em 1933, Stalin deportou para a Ilha Nazino uma série de pessoas indesejadas (comerciantes, criminosos, pessoas consideradas kulaks, camponeses que fugiram da fome no campo, outros), expulsos da nova “cidade socialista”.

Novamente Anne Applebaum, mas dessa vez na obra que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer, Gulag: Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (2003), narra esse famoso caso, também conhecido como Ilha Canibal ou Ilha da Morte. Appblebaum apresenta um relatório enviado por Vassilii Velicheko, membro do comitê do partido em Narym na Sibéria Ocidental, a Stalin em maio de 1933, encontrado nos arquivos de Novossibirsk:

“‘O primeiro comboio trazia 5.070 pessoas, e o segundo, 1.044. Ao todo, 6.114. As condições de transporte eram chocantes: a pouca comida disponível não estava em condições de consumo, e os deportados ficavam apinhados em espaços nos quais o ar quase não circulava. […] O resultado foi uma mortalidade diária de 35 a quarenta pessoas. Contudo, essas condições de vida eram luxuosas se comparadas ao que aguardava os deportados em Nazino. [….] A ilha é um lugar totalmente desabitado, desprovido de povoações de qualquer tipo. […] Não havia ferramentas, sementes nem comida. Foi assim que começou a nova vida deles. Em 19 de maio, no dia seguinte à chegada do primeiro comboio, recomeçou a nevar, e o vento ficou mais forte. Famintos, emaciados após meses de alimentação insuficiente, sem abrigo e sem ferramentas […], estavam presos numa armadilha. Nem sequer conseguiam acender fogueiras para espantar o frio. Começaram a morrer em número cada vez maior. […] No primeiro dia, enterraram-se 295 pessoas. Foi somente no quarto ou quinto dia depois da chegada do comboio à ilha que as autoridades enviaram de barco um pouco de farinha, não mais que algumas libras por cabeça. Depois de recebida a mísera ração, as pessoas corriam para a margem e tentavam misturar um pouco da farinha com água, usando seus chapéus, suas calças ou seus casacos. A maioria simplesmente tentou comê-la assim mesmo, e alguns engasgaram até a morte. Essa minúscula quantidade de farinha foi a única comida que os deportados receberam durante toda a estada na ilha. […]’ (Conclui Appelbaum) O funcionário do Partido contava que, três meses depois, em 20 de agosto já haviam perecido quase 4 mil dos 6.114 “colonos” originais. Os sobreviventes só não tiveram o mesmo destino porque comeram a carne dos mortos. Segundo um preso que encontrou alguns desses sobreviventes na prisão de Tomsk, eles pareciam “cadáveres ambulantes”, e todos estavam detidos – acusados de canibalismo.”

Segundo o historiador francês Nicolas Werth em Ilha Canibal: Morte num Gulag Siberiano (Direitos Humanos e Crimes Contra a Humanidade) (2006), em 21 de maio daquele ano, três oficiais de saúde contaram 70 novas mortes por efeitos de canibalismo, e, no mês seguinte, cerca de 50 pessoas foram presas por canibalismo. Werth também expõe no livro o relato detalhado de uma testemunha concebido em 1989 ao grupo Memorial:

“Eles estavam tentando fugir, nos perguntaram; ‘Onde está a estrada de ferro?’ Eu nunca tinha visto um trem. Eles perguntaram ‘Onde está Moscou? Leningrado?’ Eles estavam fazendo perguntas às pessoas erradas, que nunca tinham ouvido falar desses lugares. As pessoas estavam fugindo da fome. Demos a eles um punhado de farinha. Eles a misturaram com água e bebendo-a em seguida, eles imediatamente tiveram diarreia. As pessoas estavam morrendo por toda parte, pois eles estavam matando uns aos outros. […] Na ilha havia um guarda chamado Kostia Venikov, um jovem companheiro. Ele estava namorando uma menina bonita que tinha sido enviada para lá. Ele a protegeu. Um dia, ele teve que se afastar por um tempo, e ele disse a um dos seus companheiros: ‘Cuide dela’, mas como todas as pessoas de lá o camarada não podia fazer muita coisa. […] Algumas pessoas pegaram a menina e a amarraram a uma árvore de álamo, cortaram seus seios, seus músculos, tudo o que eles poderiam comer, tudo, tudo. […] Eles estavam com fome, tinham que comer. Quando Kostia voltou, ela ainda estava viva, mas ela havia perdido muito sangue.”

Mapa da área de Nazino

CHINA

Grande Salto Adiante (1958-1962)

O Grande Salto Adiante foi uma política de reforma agrária (coletivização do campo) e industrialização urbana, forçada por Mao Tsé-Tung (1893-1976) na China Comunista, para o desenvolvimento de uma nação igualitária em tempo recorde, inspirado nas políticas stalinistas.

O resultado disso, como você já deve imaginar, foi a Grande Fome Chinesa, que levou a morte de aproximadamente 45 milhões de pessoas e aos casos de canibalismo.

A escritora Jung Chang e o historiador (seu marido) Jon Halliday na biografia Mao: A História Desconhecida (2005) relata esse episódio desastroso da economia comunista chinesa:

“As pessoas eram instruídas a comer ‘substitutos de comida’. Um deles era uma substância parecida com ova de peixe chamada clorela, que crescia na urina e continha um pouco de proteína. Depois que Chou En-Lai provou e aprovou essa coisa nojenta, ela logo passou a prover uma alta proporção da proteína da população urbana. Essa epidemia de fome, que era nacional, começou em 1958 e durou até 1961, com o auge em 1960. Nesse ano, as estatísticas do próprio regime registraram que a ingestão diária de calorias caíra para 1534,8. De acordo com Han Suyin, um grande defensor do regime, as donas de casa urbanas estavam consumindo um máximo de 1200 calorias por dia em 1960. Em Auschwitz, os trabalhadores escravos recebiam entre 1300 e 1700 calorias por dia. Eles trabalhavam onze horas diárias e a maioria que não conseguia comida extra morria em poucos meses. Durante a fome, alguns apelaram para o canibalismo. Um estudo pós-Mao (logo proibido) do condado de Fengyang, na província de Anhui, registrou 63 casos de canibalismo só na primavera de 1960, inclusive o de um casal que estrangulou e comeu o filho de oito anos. E o caso de Fengyang não era provavelmente o pior. Em um condado de Gansu em que um terço da população morreu, o canibalismo era corrente. Um quadro de aldeia que perdeu esposa, irmã e filhos contou depois a jornalistas: ‘Muita gente na aldeia comeu carne humana […] Veem aquelas pessoas acocoradas tomando sol do lado de fora do escritório da comuna? Algumas delas comeram carne humana […] As pessoas simplesmente ficavam loucas de fome’. Enquanto tudo isso acontecia, havia abundância de alimentos nos celeiros do Estado, que eram guardados pelo Exército. Uma parte disso simplesmente apodreceu. Um estudante polonês viu frutas ‘apodrecendo às toneladas’ no sudeste da China no verão-outono de 1959. Mas a ordem de cima era: ‘Não abrir absolutamente a porta do celeiro, mesmo que as pessoas estejam morrendo de inanição’ (e-si bu-kai-cang). Perto de 38 milhões de pessoas morreram de fome e excesso de trabalho no Grande Salto Para a Frente, na epidemia de fome que durou quatro anos. […] Foi a maior epidemia de fome do século xx – e de toda a história registrada da humanidade. Mao matou conscientemente de inanição e excesso de trabalho essas milhões de pessoas.”

O historiador neerlandês Frank Dikötter em A Grande Fome de Mao: A história da catástrofe mais devastadora da China, 1952-68 (2010) também dedica um capítulo inteiro ao canibalismo fruto dessa política econômica, e apresenta um novo número de mortes ao final:

“Nesse mundo saqueado de qualquer camada que pudesse oferecer sustento, até casca de árvore e lama, cadáveres terminavam em covas rasas ou simplesmente à beira da estrada. Poucas pessoas comiam carne humana. Isso começou em Yunnan, onde a fome iniciou-se no verão de 1958. A princípio, a carcaça de gado doente era desenterrada, mas, quando a fome apertou, algumas pessoas finalmente desenterraram, ferveram e comeram corpos humanos. Logo, a prática apareceu em cada região dizimada pela fome, até mesmo em uma província relativamente próspera como Guangdong. Em Tanbin, Luoding, por exemplo, uma comuna onde um em cada vinte aldeões morreu em 1960, várias crianças foram comidas. Poucos arquivos oferecem mais que uma referência indireta ao canibalismo, mas alguns relatórios policiais são bastante detalhados. Em uma pequena aldeia no condado de Xili, Gansu, aldeões sentiram o cheiro de carne cozida vindo da cabana de um vizinho e informaram ao secretário da aldeia, que suspeitou do roubo de um carneiro e foi investigar. Descobriu carne estocada em barris, assim como um prendedor de cabelo, ornamentos e um cachecol queimado no fundo de um buraco. Os artefatos foram imediatamente identificados como pertencentes a uma jovem que desaparecera da aldeia dias antes. O homem confessou não apenas esse crime, como também ter desenterrado e comido os corpos de duas crianças em ocasiões anteriores. Depois que a aldeia tomara providências para proteger os túmulos da profanação, ele se voltara para o assassinato. Carne humana, como tudo o mais, era comercializada no mercado negro. Um homem que trocou um par de sapatos por 1 quilo de carne na estação ferroviária de Zhangye descobriu que o pacote continha um nariz humano e várias orelhas. Decidiu informar o ocorrido ao Departamento de Segurança Pública local. Para escapar à detecção, a carne humana era misturada, às vezes, com carne de cachorro, no mercado negro. […] A evidência dos arquivos apresentada a seguir pela primeira vez confirma as descobertas de Chen Yizi e põe o número de mortes prematuras conservadoramente em um mínimo de 45 milhões para a grande fome de 1958–62.”

Fazendeiro canibal assassinou próprio filho para se alimentar, na província de Hunan, condado Lixian, na China (1960)

Revolução Cultural (1966-1976)

A Revolução Cultural foi um movimento político de massas lançado por Mao Tsé-Tung para se recuperar dos fracassos do Grande Salto Adiante. Essa revolução consistia na perseguição implacável de supostos elementos capitalistas, direitistas, conservadores, contrarrevolucionários, em toda a sociedade chinesa. Essa política persecutória levou ao número que varia entre centenas de milhares e milhões mortes.

Novamente Jung Chang e Jon Halliday em Mao: A História Desconhecida (2005) apresentam um novo tipo de canibalismo, não o gerado pela fome, mas sim pelo ódio produzido pela teoria socialista da luta de classe, veja:

“O terror de Estado não somente aumentou o nível da violência, como foi muito mais horrendo do que a luta entre facções. A ilustração mais clara disso aconteceu na província meridional de Guangxi, no verão de 1968. Ali, uma facção recusou-se a reconhecer a autoridade do homem de Mao, o general Wei Guo-qing (que ajudara a comandar a batalha decisiva contra os franceses em Dien Bien Phu, no Vietnã, em 1954). Wei estava decidido a usar qualquer grau de força para esmagar seus oponentes. Isso envolvia não apenas o uso de metralhadores, morteiros e artilharia, mas também a incitação de assassinatos medonhos de grande número de pessoas apontadas pelo regime como ‘inimigos de classe’. Como disse o oficial que chefiava o condado de Binyang aos seus subordinados: ‘Vou agora revelar o limite mínimo para vocês: nessa campanha, devemos matar cerca de um terço ou um quarto dos inimigos de classe, com cacetes ou apedrejamento’. A morte por execução direta não era considerada suficientemente assustadora: ‘Está bem executar alguns para começar, mas devemos orientar as pessoas a usar punhos, pedras e paus. Somente dessa maneira podemos educar as massas’. Depois que a ordem foi dada, no período de onze dias entre 26 de julho e 6 de agosto de 1968, 3681 pessoas desse condado foram espancadas até a morte nos dois anos anteriores da Revolução Cultural fora de ‘apenas’ 68. Essa rodada de matanças custou cerca de 100 mil vidas na província. As autoridades encenaram ‘demonstrações-modelo de assassinar’ para mostrar às pessoas como aplicar o máximo de crueldade e, em alguns casos, a polícia supervisionava a matança. Na atmosfera geral de fomento da crueldade, surgiram ataques de canibalismo em muitas regiões da província; o mais conhecido ocorreu no condado de Wuxuan, onde uma investigação oficial após a morte de Mao (em 1983, logo interrompida e com seus resultados suprimidos) revelou uma lista de 76 nomes de vítimas. A prática do canibalismo começava em geral com ‘comícios de denúncia’ típicos do maoísmo. Logo depois as vítimas eram mortas e escolhiam-se as partes de seus corpos – coração, fígado e, às vezes, pênis – a serem arrancadas, muitas vezes antes de a vítima estar morta. Essas partes eram cozidas ali mesmo, e comidas naquilo que, na época, chamou-se de ‘banquetes de carne humana’.Guangxi é a região que talvez tenha a paisagem mais pitoresca da China: lindas colinas que sobem e descem, cujos picos, refletidos em águas cristalinas, parecem tão reais como os próprios. Foi nesse cenário de duplas silhuetas celestiais e dos rios mais puros que se realizaram os ‘banquetes de carne humana’. Um camponês de 86 anos, que, em plena luz do dia, havia aberto o peito de um menino cujo único crime fora ser filho de um ex-dono de terras, nos mostrou como as pessoas não tinham problemas para encontrar justificativas para suas ações nas palavras de Mao. ‘Si, eu o matei!’, contou ele depois a um repórter investigativo. ‘A pessoa que matei é um inimigo […] Ha, há! Eu faço revolução e meu coração é vermelho! O presidente Mao não disse: ou os matamos ou eles nos matam? Você morre e eu vivo, isso é luta de classes!’.”

Execução de 8 elementos “contrarrevolucionários” durante a Revolução Cultural (05/04/1968).

CAMBOJA

Genocídio Cambojano (1975-1979)

O Khmer Vermelho, liderado pelo sanguinário Pol Pot (1925-1998), assumiu o controle da capital do país, Phnom Penh, em 17 de abril de 1975. Imediatamente eles esvaziaram a cidade e levaram a população para campos de trabalho na zona rural onde, o abuso físico, as doenças e a fome prevaleceram. Suas políticas nada mais eram que adaptações radicais das teorias maoistas e marxistas-leninistas, tentando transformar o Camboja, de cima para baixo, numa sociedade rural sem classes, composta por fazendas coletivas. O resultado disso foi nada mais nada menos que aproximadamente 2 milhões de mortos, cerca de 25% da população total à época.

Stéphane Courtois e o seu grupo em O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror e Repressão (1997) relatam alguns casos de canibalismo causados pela fome:

“A fome, como se sabe, desumaniza. Faz com que as pessoas se fechem sobre si mesmas, esquecendo qualquer consideração estranha à sua própria sobrevivência. Como explicar de outra forma o recurso ocasional ao canibalismo? Foi, em todo o caso, menos extenso do que na China do Grande Salto Adiante, e parece ter se limitado ao consumo de cadáveres. Pin Yathay menciona dois exemplos concretos: uma ex-professora que devorou parcialmente a irmã, e, numa enfermaria de hospital, a partilha do cadáver de um jovem. Em ambos os casos, a sanção para os ‘ogres’ (espírito particularmente demoníaco na tradição khmer) é a morte; e, no caso da professora, através de espancamento diante de todo o povoado (e de sua filha). O canibalismo vingativo também existia, como na China: Ly Heng evoca o caso de um soldado khmer vermelho, desertor, forçado, antes de ser executado, a comer as suas próprias orelhas. O consumo de fígado humano é o mais citado, apesar de não se tratar de uma especificidade dos Khmers Vermelhos: os soldados republicanos impunham-no por vezes aos seus inimigos, entre 1970 e 1975; encontramos costumes semelhantes por todo lado no Sudeste Asiático. Haing Ngoir relata a extirpação, numa prisão, do feto, do fígado e dos seios de uma mulher grávida assassinada; o feto é jogado fora (onde outors já se encontram secando dependurados na beirada do telhado do cárcere), o resto é levado, com esse comentário: ‘Esta noite temos fartura de carne!’ Ken Khun recorda um chefe de cooperativa preparando um remédio para os olhos a patir de vesículas biliares humanas (e distribuindo-o liberalmente pelos seus subordinados!) enquanto exaltava as qualidades palatares do fígado humano. Não existirá nesse recurso à antropofagia um caso-limite de um fenômeno muito mais geral: o enfraquecimento dos valores, das referências morais e culturais e, antes de mais nada, da compaixão, virtude tão fundamental no budismo? Paradoxo do regime dos Khmers Vermelhos: afirmando querer implementar uma sociedade de igualdade, de justiça de fraternidade, de abnegação, e, tal como os outros poderes comunistas, provocou-se um desencadeamento espantoso de egoísmo, do cada um por si, de desigualdade no poder, de arbitrariedade. Para sobreviver, era necessário sobretudo, e antes de mais nada, saber mentir, enganar, roubar e permanecer insensível. […] Por vezes era concretizada a sinistra ameaça, constantemente repetida pelos Khmers Vermelhos, de ir servir de ‘fertilizantes aos arrozais’: ‘Matavam-se constantemente homens e mulheres para fazer adubo. Enterravam-se os cadáveres em valas comuns que eram onipresentes nos campos de cultivo, sobretudo nos de mandioca. Com frequência, ao arrancar os tubérculos de mandioca, desenterrava-se um crânio humano através de cujas órbitas saíam as raízes da planta comestível.’ Os senhores do país parecem por vezes ter acreditado que não há nada melhor do que os cadáveres humanos para a agricultura; embora também seja lícito ver aqui, em paralelo como canibalismo (dos quadros), o ponto culminantes da negação da humanidade dos ‘inimigos de classe’.”

Museu do Genocídio, onde são expostos milhares de crânios de vítimas não identificadas do Khmer Vermelho.

Após a leitura de cada uma dessas histórias macabras, fica evidente como a ideologia socialista de destruição da propriedade privada ou, se preferir, coletivização das propriedades produtivas, e a da luta de classes, corrói a economia e o tecido social de um povo, provocando a fome, e, em última instância, surtos de canibalismo. Observe que não falamos da Coréia do Norte e Etiópia (para não prolongarmos ainda mais o texto), onde casos semelhantes também já foram testemunhados. Venezuela e Cuba, apesar de não termos conhecimento de surtos de canibalismo, não faltam evidências de que muitas pessoas passam fome nesses países, comem cachorros, rações de animais, carne podre, etc. Infelizmente ainda há muita gente que acredita na falsa equivalência moral entre a fome produzida nos regimes comunistas, e a população carente de uma democracia liberal.

Imigrantes venezuelanos fugindo da fome. Adultos e crianças percorreram mais de 6 mil quilômetros até chegar em Recife (Foto: Filipe Jordão/ JC Imagen, 2019)

Por: Jason Medeiros

Jason de Almeida Barroso Medeiros, 26 anos, bacharelando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco; Oficial da Reserva do Exército Brasileiro pelo CPOR/R; Entusiasta da filosofia política e editor do perfil @ocontribuinteoriginal no Instagram.