Análise

Bolsonaro e Lula unem-se para eliminar provas sobre processos de corrupção

Jair Bolsonaro detesta Lula. E vice-versa. A compreensão do jogo bruto da política exige, entretanto, a sutileza de identificar as semelhanças que unificam os personagens diferentes. No momento, Bolsonaro e Lula igualam-se em dois objetivos estratégicos. Na montagem do cenário para a disputa presidencial de 2022, tornaram-se cabos eleitorais um do outro. Na estratégia para lidar com processos por corrupção, agem para matar provas.

A 5ª Turma do STJ fez a festa de Jair Bolsonaro ao anular a quebra dos sigilos bancário e fiscal do primogênito Flávio no caso da rachadinha. A 2ª Turma do STF ensaia a anulação da sentença referente ao caso do tríplex do Guarujá, que rendeu a Lula uma temporada na cadeia e um jejum de urnas. Nos dois casos, o sonho do extermínio de provas nunca foi tão palpável.

A eventual impunidade do primogênito livrará Bolsonaro de ter que explicar os depósitos de R$ 89 mil que o operador de rachadinhas Fabrício Queiroz e a mulher dele borrifaram na conta da primeira-dama Michelle. A reversão da condenação de Lula envernizará a pose de vítima. E abrirá o caminho para a lavagem da ficha suja que mantém o pajé do PT longe das urnas.

O placar de 4 a 1 que favoreceu Flávio no STJ foi puxado pelo voto de João Otávio Noronha, ministro por quem Bolsonaro nutre um “amor à primeira vista”. Noronha cultiva em privado o desejo de ser indicado pelo pai de Flávio à poltrona que ficará vazia no Supremo com a aposentadoria iminente de Marco Aurélio Mello.

Esta será a segunda vaga a ser preenchida por Bolsonaro no Supremo. Na primeira indicação, o presidente acomodou no assento de Celso de Mello um juiz que bebeu tubaína com ele no Alvorada: Kássio Nunes Marques. Dá-se de barato que Nunes Marques presenteará Lula com o voto de minerva na sessão em que será revogada a sentença de Sergio Moro no caso do tríplex.

A desqualificação de Moro interessa também a Bolsonaro. Empenhado em retirar seu ex-ministro da Justiça do rol de alternativas presidenciais de centro-direita para 2022, o presidente cogita inclusive requisitar cópias de um papelório que o STF já repassou à defesa de Lula: as mensagens trocadas no aplicativo de celular entre Moro e os procuradores de Curitiba, especialmente Deltan Dallagnol.

“Para que não haja dúvida, mandei pedir aquela matéria hackeada que está na mão do PT, na mão do Lula”, disse Bolsonaro dias atrás. “Tem meu nome lá. Alguma coisa já passaram para mim. Vocês vão cair para trás. Chegando, eu vou divulgar. O Lula não vai divulgar. Já falou que não vai. Eu vou divulgar.”

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Cavalgando o material roubado dos celulares pelos hackers, Lula reitera o discurso da perseguição política. Algoz da família Bolsonaro, responsável pela abertura dos sigilos do Zero Um, o juiz Flávio Itabaiana, do Rio de Janeiro, não teve diálogos expostos nas manchetes. Mas isso não impediu a primeira-família de mimetizar a pregação petista do conluio.

“É muito claro pra mim que há uma perseguição absurda no Rio de Janeiro, porque querem me atingir para atingir o presidente da República”, já declarou Flávio Bolsonaro. “Há, sim, um conluio de várias pessoas poderosas para —dia sim, dia também— atacar o presidente da República, causar uma instabilidade e tentar tirá-lo na força”.

Nem só de perseguição é feita a estratégia de Bolsonaro e Lula. Os dois não têm do que reclamar, por exemplo, da forma como o ministro Gilmar Mendes administra suas gavetas no Supremo. Graças a um pedido de vista de Gilmar, o julgamento do tríplex aguarda desde 2018 pelo surgimento das condições mais apropriadas para a anulação da sentença.

Deve-se ao mesmo senso de oportunidade de Gilmar a protelação da análise do recurso em que o Ministério Público contesta a decisão judicial que concedeu a Flávio Bolsonaro o foro privilegiado do Tribunal de Justiça do Rio.

Na próxima terça-feira, serão julgados na 5ª Turma do STJ outros recursos do Zero Um. Entre eles o que reivindica o reconhecimento da incompetência de Flávio Itabaiana, o juiz de primeira instância, para atuar no caso. Se for deferido, todos os atos praticados pelo magistrado irão para o beleléu.

Num país lógico, esse julgamento do STJ não poderia ocorrer antes que a Suprema Corte decidisse se o filho do presidente tem mesmo direito ao foro especial. A jurisprudência do STF indica o contrário, pois Flávio já não exercia o mandato de deputado estadual quando as investigações deixaram sua imagem rachadinha.

O processo político, sempre tão obscuro, fica subitamente clarificado quando se verifica que personagens como Bolsonaro e Lula não estão imunes às tentações um do outro. Nos meandros da estratégia eleitoral e das aflições criminais somem as pseudodiferenças. Só não desaparecem as provas.

O que fazer com a corrupção? Como apagar a confissão do empreiteiro que trocou o acesso aos cofres da Petrobras pelos confortos da família Silva? Que fazer com as evidências de que a empreiteira corrupta ajustou o tríplex ao gosto da ex-primeira-dama Marisa? Onde enfiar depoimentos, documentos e perícias?

Como esconder o vaivém de dinheiro vivo usado na aquisição de imóveis pelo Zero Um? Onde enfiar as evidências de que a loja de chocolates virou lavanderia? Que borracha apagará os pagamentos de despesas familiares com verbas recolhidas pelo faz-tudo Queiroz? Quem levará à vitrine a explicação sobre a origem dos R$ 89 mil que gotejaram na conta da primeira-madame?

O desejo compartilhado de matar provas produz uma inusitada ‘despolarização’ dos movimentos de Bolsonaro e Lula. O enterro de evidências prossegue. Mas em algum momento será necessário responder às interrogações que se acumulam ao longo do cortejo fúnebre.

*Artigo publicado por Josias de Souza no Portal UOL